sexta-feira, 30 de outubro de 2015

As marcas da esquizofrenia



Conviver com um doente com esquizofrenia não é tarefa fácil. Envolve perigos e medos psicológicos e até físicos. Alexandra Mota, irmã de um doente com esquizofrenia, revela situações verdadeiramente traumatizantes. "Quem vive com um esquizofrênico fica com marcas profundas para o resto da vida". Marcas que, segundo Alexandra, se escondem por detrás de muitas portas.


Qual o perfil de um esquizofrênico?
Um médico psiquiatra será, talvez, a pessoa mais aconselhada para traçar um perfil clínico. No entanto, da vivência que tenho, poderia dizer que um esquizofrênico é alguém que perde a capacidade de pensar de uma forma lógica e, consequentemente, de comunicar e de se relacionar, passando a viver num mundo paralelo e sem as normas pelas quais se regem as pessoas ditas normais. Entramos no mundo da loucura. Imaginemos uma corrente composta por vários elos interligados. Esta seria a metáfora para o pensamento lógico. Num esquizofrênico, os elos da corrente soltam-se e as ideias surgem sem uma sequência causal, condicionando o comportamento e os sentimentos.Aquilo que é realidade hoje poderá deixar de ser amanhã. Objetos, palavras, números, cores... ganham significados totalmente inesperados: "Os barcos que atracam no Tejo estão a espiar-me"; "o gravador tinha escutas"; "a comida tem veneno"...Mudanças súbitas de humor, desconfiança extrema, provocação, confusão, isolamento, incompreensão... a intercalar, alguns momentos de lucidez, arrependimento, choro, desamparo total... procura desesperada de um carinho...Ainda assim, os medicamentos existentes permitem criar uma ligação artificial entre estes elos da corrente, razão pela qual um doente que aceda a fazer um tratamento efetivo e continuado poderá alterar estas características e voltar a aproximar-se do 'mundo real', tal como o conhecemos.

Há episódios que tenham ocorrido consigo (e o seu irmão) que tenham envolvido algum perigo, violência...?
Sim, comigo e com os restantes membros da família. O internamento hospitalar que levou ao início do tratamento do meu irmão foi feito sob escolta policial, depois de uma agressão a mim e aos meus pais.Mas não foi esta a primeira situação de violência: ameaças de violação feitas diretamente a mim; a minha mãe foi queimada com o ferro de engomar; a minha avó, já com 80 anos, empurrada para o chão; uma faca apontada ao pai; as portas e armários partidos a murro, vários equipamentos eléctricos (aparelhagem, etc.) partidos... provocações constantes a vizinhos e amigos da família... ameaças...

Que riscos há em viver com um doente destes (para os familiares e amigos)?
Quando o doente se encontra descompensado, sem medicação, existem verdadeiros riscos físicos (de vida) e psicológicos, essencialmente, para os familiares, já que a amizade raramente resiste a uma situação de esquizofrenia grave.E se os riscos físicos são visivelmente os mais graves, os psicológicos são tremendos. O medo permanente, a sensação de impotência de não conseguir travar a doença de um filho ou de um irmão, o trauma emocional de chegar a odiar alguém que se ama... e ninguém, nenhuma instituição, a que se possa recorrer...Eu diria mesmo que quem vive com um esquizofrênico fica com marcas profundas para o resto da vida. A sensação de medo volta a cada estrondo... mesmo depois de anos. A preocupação, o nervosismo...E os riscos existem também para o próprio esquizofrênico que tende a autoflagelar-se, embora isto nunca tenha chegado a suceder com o meu irmão.

Que alternativas têm os familiares que não queiram/possam viver com estes doentes? Onde os podem colocar? Qual o dispêndio aproximadamente?
Existem muito poucas alternativas, especialmente se o doente não quiser ser tratado/internado. Apesar de um esquizofrênico ser considerado inimputável perante a lei, no caso de cometer um crime, é considerado responsável para decidir se quer ser internado. (Eu diria que o próprio sistema de saúde sofre de uma dose considerável de esquizofrenia.)Desde que este seja adulto, mesmo depois de diagnosticada a esquizofrenia, o doente continua a ser responsável por ele próprio perante as entidades de saúde. Uma realidade inacreditável para quem deveria saber melhor do que ninguém que quase nenhum esquizofrênico reconhece a sua doença.A opinião dos médicos, daqueles com quem falei, é a de que retirar o doente da família é cortar os últimos laços com a realidade. Compreendo perfeitamente essa perspectiva e concordo, desde que não seja generalizada a todos os casos e não seja aplicada em situações limite.No dia em que o meu irmão foi hospitalizado no Júlio de Matos seria talvez a terceira ou quarta vez que ali era levado pela polícia, depois de agressões à família. Mesmo assim, o médico deu-lhe alta e mandou-o regressar a casa.Segundo o médico, o meu irmão já estava bem e não voltaria a agredir ou a pôr em risco as vidas dos familiares. No entanto, quando lhe 'sugerimos' que escrevesse e assinasse uma declaração onde afirmaria isto mesmo e onde se responsabilizaria pelo que sucedesse no futuro, o seu discurso alterou-se radicalmente e só assim ficou internado. Um internamento de cerca de dois meses.Há várias instituições que recebem os doentes que acedem em tratar-se (desconheço preços, porque na altura a minha família não tinha possibilidades de pagar). Penso até que existem instituições não governamentais e sem fins lucrativos que apoiam alguns destes casos, mais como um apoio de tempos livres, do que propriamente como um local de tratamento.

Quando é que ao seu irmão lhe foi diagnosticada a doença? Qual foi a evolução da doença? Quais são os seus comportamentos no cotidiano?
A doença manifestou-se aos 21 anos e, inicialmente, pensamos tratar-se de uma depressão nervosa. Terá sido diagnosticada talvez dois anos depois. Até então, era uma pessoa reservada e algo nervosa mas perfeitamente normal, muito responsável com o seu emprego, com os seus amigos...Durante cerca de dez anos recusou o tratamento e só depois do internamento hospitalar acedeu continuar a medicação e o acompanhamento médico.Hoje, tem 36 anos, está em casa praticamente todo o dia. Não trabalha, não tem amigos, não se relaciona com praticamente ninguém a não a ser com a família, mas consegue ter conversas coerentes, gestos meigos e carinhosos, preocupações com os pais e irmãos, brincadeiras com o sobrinho.Continua a ir, uma vez por mês, ao hospital Júlio de Matos, onde toma uma injeção. A restante medicação é tomada por ele próprio, por sua iniciativa, e tem sido reduzida gradualmente, tornando-se praticamente imperceptível (não está drogado ou adormecido por comprimidos).Continuamos a tentar que crie e reforce novos laços e volte a socializar-se...

Porque é que muitos doentes se recusam a ser medicados e porque é que apresentam uma força física enorme quando se vêem contrariados?
A recusa dos medicamentos é própria de quem acha que não está doente e que todos os que o rodeiam só querem destruí-lo. Aquilo a que chamamos 'mania da perseguição' é uma das características da doença e por isso o doente acha que é o mundo inteiro quem lhe quer fazer mal, sejam os médicos ou os familiares.A força física é algo que não consigo explicar porque nunca consegui perceber. Talvez a canalização de toda a energia (e nós não somos senão energia) num único ato, num mesmo momento...Gostaria de acrescentar que, só no local onde vivo, um bairro como tantos outros, na cidade de Lisboa, conheço cerca de seis casos de esquizofrenia, a maioria em jovens, mas não só. Todos eles e as suas famílias viveram (alguns continuam a viver) situações dramáticas que duram décadas e décadas.Há um caso de um doente, que deve ter hoje mais de 40 anos, que está fechado num quarto há cerca de 20 anos. Ninguém, nem a própria mãe, se pode aproximar dele. Não se lava, não se veste... A comida é colocada à porta...E estamos a falar de um ser humano que vive num país que se diz desenvolvido e globalizado, mas que ignora totalmente o que se passa atrás de cada porta, especialmente quando o problema se relaciona com a saúde mental.

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